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quarta-feira, 5 de maio de 2010

Treinando a interpretação em face da Constituição! (na foto - exposição de carros em Valência - a mensagem: devagar chegaremos lá...


7ª Câmara – Seção de Direito Privado

Apelação com Revisão n° 994.09.272710-6
Comarca: São Paulo
Ação: União estável – Reconhecimento e Dissolução
Apte(s).: M. V. M.
Apdo(a)(s).: C. D. da R. (espólio)




Voto nº 9967 (Declaração de voto vencido)



Apontando para a existência de vida em comum e unidade de propósitos, com o falecimento do companheiro, cuidou o apelante de ingressar com ação em busca do reconhecimento da união de fato e conseqüente partilha dos bens adquiridos durante o período de convivência (fls. 1/16).
A inicial resultou indeferida (fls. 56) diante previsão do inciso VI, do artigo 267, do Código de Processo Civil.
Com embargos declaratórios (fls. 59/61) rejeitados (fls. 62), apela o autor sustentando ter atendido aos pressupostos básicos da ação cumprindo, por conseqüência, o regular processamento do feito até final procedência tendo apresentado diversos julgados a sustentar a pretensão (fls. 65/83). Pede o provimento do recurso.
Recebido (fls. 84), com subida dos autos, distribuído, cuidou o Exmo. Desembargador Relator, pelo seu voto, de confirmar a decisão de primeiro grau tendo, tão somente, alterado o dispositivo legal.
Foi seguido pelo Exmo. Desembargador Revisor sendo que, na condição de terceiro juiz, requeri vista dos autos para fins de análise detalhada do feito.
Esse o relatório.
Embora respeitada a posição sustentada pelo i. Relator proponho, pelo meu voto, seja dado provimento ao recurso seguindo-se com o feito até final análise de mérito.
E assim aponto diante realidade vivida pelo Estado brasileiro a contar da Constituição de 1.988 que afastou, em nome da dignidade da pessoa, a possibilidade de se fazer distinção entre as pessoas tal se aplicando, também, no tocante, às questões de sexo.
Assim é que, como princípio fundamental, em seu artigo 1º, inciso III, trata da dignidade da pessoa humana, sendo que o artigo 3º, inciso IV consagra que ao Estado cabe promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ora, sob tais circunstâncias, não se compreende, em tempos vigentes, afaste o Judiciário, de pronto, a possibilidade de análise do estado de convivência entre pessoas de mesmo sexo e sob o argumento de que não existe previsão legal.
Condições diversas.
Uma é não contar com previsão da lei civil e outra é contar, de forma abrangente, na fonte originária dos direitos, com a possibilidade de moderna compreensão do relacionamento existente em termos de família.
Não se pode, portanto, com a devida vênia, tecer considerações sobre a família na imagem do início do século passado quando se exigia o formal casamento perante a autoridade pública, ficando sem proteção aqueles que se uniam sem atendimento a essa formalidade.
Tanto que ao longo do século passado, em razão da realidade vivida pelas pessoas, o Judiciário, em reiterados julgamentos, compreendendo a existência de um outro modelo de família, passou a garantir assistência para as pessoas unidas de fato à margem da legislação civil até então existente culminando, ao depois, com a edição dos diplomas que, tão somente, vieram sacramentar as condições já reconhecidas pelo órgão julgador.
Mesmo porque o juiz não pode se omitir da análise da matéria posta sob a indicação de que não existe legislação prevendo a circunstância.
Assim é que:
“Quando o magistrado não encontra norma que seja aplicável a determinado caso, e não podendo subsumir o fato a nenhuma norma, porque há falta de conhecimento sobre um ‘status’ jurídico de certo comportamento, defeito a um defeito do sistema normativo que pode consistir na ausência de uma solução, ou na existência de várias soluções incompatíveis, estamos diante de um problema de lacuna normativa, no primeiro caso, ou de lacunas de conflito, ou antinomia real, no segundo. A lacuna constitui um estado incompleto do sistema que deve ser colmatado ante o princípio da plenitude do ordenamento jurídico. Daí a importante missão do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que dá ao magistrado, impedido de furtar-se a uma decisão, a possibilidade de integrar ou preencher a lacuna, de forma que possa chegar a uma solução adequada. Trata-se do fenômeno da integração normativa. É um desenvolvimento aberto do direito, dirigido metodicamente, em que o aplicador adquire consciência da modificação que as normas experimentam, continuamente, ao serem aplicadas às mais diversas relações da vida, chegando a apresentar, na ordem normativa, omissões concernentes a uma nova exigência da vida. O juiz tem permissão para desenvolver o direito sempre que se apresentar uma lacuna” (Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. Maria Helena Diniz. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 10).
Mais:
“O magistrado, como dissemos, ao aplicar as normas jurídicas, criando uma norma individual, deverá interpretá-las, integrá-las e corrigi-las, mantendo-se dentro dos limites marcados pelo direito. As decisões dos juízes devem estar em consonância com o conteúdo da consciência jurídica geral, com o espírito do ordenamento jurídico, que é mais rico de conteúdo que a decisão normativa, pois contém os critérios jurídicos e éticos, idéias jurídicas concretas ou fáticas que não encontram expressão na norma do direito. Por isso, a tarefa do magistrado não é meramente mecânica; requer certo preparo intelectual ao determinar qual a norma que vai aplicar” (Maria Helena Diniz, ob. cit, p. 11).
No caso um problema comum e não exclusivo: o estado real de convivência a constituir célula familiar geradora de direitos em face da moderna concepção constitucional que inibe a distinção de direitos em razão da diversidade de sexo.
Se a fonte primeira consagra a igualdade dos direitos e a impossibilidade de qualquer distinção a prejudicar o reconhecimento reclamado, não se há, portanto, sustentar ausência de base legal para o pedido .
Ainda mais em tempo de constitucionalização do direito com plena influência do common law a gerar, pelos Tribunais, a própria edição de Súmulas tendo por base a reiterada apreciação de fatos em trâmite na busca de solução.
Há, a evidência, abandono da tradição romana, fator a sustentar, também, a maior importância do Judiciário no contexto constitucional pois cumpre a ele ditar, para casos de omissão, a própria solução criando, dessa forma, o próprio direito.
Tema bastante atual e que em razão da anterior e arraigada tradição romana adotada, suscita diversos debates; entretanto, efetivamente, caminhamos para um mundo diverso de profunda influência do direito saxão com a busca plena da satisfação integral, em termos de soluções, para o conflito que se apresenta.
Caso dos autos.
Não se nega a existência do relacionamento homoafetivo em que os integrantes da sociedade de fato buscam constituir uma família e, por essa razão, não dispensam a proteção da Constituição.
Não vivem e nem constituem a relação à margem da lei – se o fundamento for a lei civil, sim; mas, se for com base na fonte básica do nascimento dos direitos, a Constituição, não. E tal se dá porque, conforme já apontado, o legislador constituinte buscou afastar qualquer exclusão tendo, desde de 1.988 compreendido a diversidade existente na sociedade cumprindo, por conseqüência, ao Judiciário, quando provocado, dar a adequada solução de mérito e nos exatos limites daquilo que se reclama.
O apelante, mantida a vida em comum, busca o reconhecimento da união estável e, na seqüência, diante do término não desejado em razão da morte do companheiro, a partilha do patrimônio comum apurado, com esforço comum, ao longo desse tempo de convivência .
Não vejo, como intérprete da lei constitucional, existente qualquer omissão do legislador constituinte que, na análise lógica do texto elaborado, assegurou direitos igualitários tendo, para tanto, vedado a distinção generalizada, inclusive, em razão do sexo das pessoas.
A apontada ausência de lei infraconstitucional não tem o condão de apagar a realidade existente e nem se sustentar, pelo Judiciário, a negativa de análise pois o fato concreto a ele se apresenta e, nessa transformação jurídica em que vivemos – do civil law para o common law – importante o papel do julgador como intérprete da Constituição.
O pedido, portanto, tem base regular e, não obstante a inicial não se apresente como exemplo de peça jurídica, certo é que o apelante narrou seu histórico e formulou adequadamente o pedido de reconhecimento do direito em face da lei maior tendo também, em razão do apontamento corretivo do i. juiz de primeiro grau, em aditamento, indicado o pólo passivo qualificado para responder aos termos da ação diante do falecimento do companheiro, razão pela qual a peça não pode ser tida como inepta.
Há, dessa forma, interesse processual, legitimidade de parte e possibilidade jurídica da apreciação em face, repetindo, conteúdo explicitado pela Constituição de 88.
Merece realce, de outra parte, ensinança do i. Desembargador Caetano Lagrasta Neto:
“Do mesmo modo, resultou reconhecida a participação de pessoa do mesmo sexo que tenha vivido com o parceiro, durante longos anos, acudindo-o na doença, com direitos que se sobrepõem ao dos familiares ou herdeiros em geral, que, em razão de preconceito ou indiferença, afastaram-se, retornando apenas no momento extremo da morte, pretendendo disputar o patrimônio constituído exclusivamente pelos conviventes da união estável” (Direito de Família: a família brasileira no final do século XX. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 132).
Na seqüência, sensível à realidade social vivida, adverte:
“Entre pessoas de mesmo sexo, não previsto em lei o reconhecimento, com vistas à união conjugal (casamento), a situação acaba por incentivar preconceituosa hipocrisia, e investe contra a cidadania e os direitos humanos, uma vez que a jurisprudência apenas procura garantir direitos patrimoniais ou de companheirismo na herança, vedando o reconhecimento de uniões estáveis ou a possibilidade de adoção ou de inseminação assistida, em barriga de aluguel” (Caetano Lagrasta Neto, ob. cit, p. 133).
Não sem tempo que em razão do comando constitucional, vem o Estado reconhecendo, na esfera previdenciária , a concessão de pensão ao companheiro sobrevivente e, no campo do direito eleitoral e da contratação no serviço público, a figura do parentesco e do vínculo não se justificando, por conseqüência, nas demais searas, a manutenção de irreal interpretação a ferir os direitos e a fechar os olhos para a realidade social vivenciada.
Mesma posição de Glauber Moreno Talavera ao assinalar:
“...os modelos convencionais afetos às minorias sociais devem ser regulados, pois embora não seja inverídico que a regulação desses modelos cerceia a liberdade dos conviventes, não é menos verdade que a falta de regulação os relega ao obscurantismo, solo fértil para cultivo da discriminação e preconceito” (União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 33).
Ana Carla H. Matos, refere:
“Ao lado do princípio da igualdade, está o também relevante princípio da pluralidade familiar a informar essas realidades. Talvez por isso, melhor seria denominar-se – o princípio da paridade, para ser destacado o tratamento diferenciado necessário ao tratamento de realidades sociais próximas, mas diversas. A união estável, então, importa um contexto mais próximo do conteúdo da união homoafetiva – tendo-se em vista serem ambas as realidades uniões familiares” (A consagração jurídica da união homossexual, in Direitos Humanos e Democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 148).
Ademais,
“A nossa Constituição Federal, aliás, prevê a igualdade formal; a igualdade de todos perante a lei e o combate à discriminação. E, como explica, o ilustre jurista português J.J. Gomes Canotilho, ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. Significa ‘igualdade na aplicação do direito’.
Assim sendo, não se pode analisar o artigo 226, parágrafo terceiro, da Constituição de forma isolada, ou restritiva. Referida regra deve ser interpretada em consonância com os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana já citados. Nesse contexto, na verdade, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu o legislador constitucional excluir dessa proteção outras formas de união, como a homoafetiva e inexistente tal restrição mostra-se perfeitamente cabível a aplicação analógica para situações atuais, antes não previstas expressamente. A lacuna da lei não pode servir de obstáculo para o reconhecimento de um direito. A explicitação do casamento, da união estável e da família monoparental não exclui as demais que se constituem como comunhão de vida afetiva, com finalidade de família, de modo público e contínuo” (TJ-SP, Conflito de competência n. 170.046-0/6-00, Câmara Especial, rel. Desembargadora Maria Olívia Alves).
No destaque de Claudia Tomé Toni:
“Na realidade, o legislador constitucional, ao se referir a essas espécies de entidades familiares, não previu qualquer proibição à instituição de outros tipos de formações familiares. Ao contrário, pela leitura do texto, podemos concluir claramente que o legislador, ao dizer que a família e base da sociedade, ressaltou sua importância em nosso meio e, portanto, a sua imprescindibilidade para nossa sociedade e para o próprio Estado, independentemente do modo como foi constituída. Esse fundamento é invocado pelos juristas que defendem que a união entre homossexuais também deve ser considerada forma legítima de constituição de família e que, por isso, pode ser equiparada à união estável, estabelecida entre casais heterossexuais, sem o formalismo do casamento” (Manual de Direitos dos Homossexuais, SRS. Editora, 1ª ed. P. 50/51).
Ademais:
“Não é admissível supor que a Constituição tenha tido a intenção de facultar os representantes do povo para substituir a sua vontade à de seus eleitores. É muito mais racional entender que os tribunais foram concebidos como um corpo intermediário entre o povo e a legislatura, com a finalidade, entre várias outras, de manter esta última dentro dos limites atribuídos à sua autoridade. A interpretação das leis é própria e peculiarmente da incumbência dos tribunais. Uma Constituição é, de fato, uma lei fundamental e assim deve ser considerada pelos juizes. A eles pertence, portanto, determinar o seu significado, assim como o de qualquer lei que provenha do corpo legislativo. E se ocorresse que entre as duas existisse uma discrepância, deverá ser preferida, como é natural, aquela que possua força obrigatória e validez superiores; em outras palavras, deverá ser preferida a Constituição à lei ordinária, a intenção do povo à intenção de seus mandatários...” (Alexander Hamilton em referência de Inocência Mártires Coelho à posição da Suprema Corte Americana em influência nas democracias in Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2.009, p. 15)
Em outra lição, esta em julgamento perante o Eg. Tribunal de Justiça, o i. Desembargador Caetano Lagrasta, tratando da mesma matéria e, também, da competência das Varas de Família, assinala:
“A existência de dissídio jurisprudencial afasta a possibilidade de extinção por impossibilidade jurídica do pedido – apesar da controvérsia a respeito do assunto e respeitada a convicção do julgador -, configurando, por si só, motivo suficiente para receber a peça inicial do autor, garantindo-lhe o acesso a uma ordem jurídica justa, numa das Varas de Família, eis que aqui se discutem vínculos de sentimento e afeto familiar, não reduzidos a meras discussões patrimoniais. O interesse da questão se amplia, diante do crescente número de paises estrangeiros – hoje, mais de 30 – que adotaram legislação reconhecendo as uniões homossexuais, como Dinamarca, Suécia, Noruega, Islândia, Espanha, Grã-Bretanha e Alemanha; observa-se, nesse ponto, que recente Resolução do Conselho Nacional de Imigração, n. 77, de 29 de janeiro de 2008, estabelece que será aceito para emissão de visto provisório para estrangeiro, atestado de união civil com brasileiro, emitidos pelos paises que considerem legal a união entre pessoas de mesmo sexo, além de outras providências.
Ao cabo, merecem especial atenção, os inúmeros projetos de lei regulamentando a questão em trâmite no Brasil, o Estatuto das Famílias na Câmara Federal (Projeto de Lei n. 2285/2007), em cuja Exposição de Motivos o deputado SERGIO BARRADAS CARNEIRO argumenta que: ‘O estágio cultural que a sociedade brasileira vive, encaminha-se para o pleno reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. A norma do art. 226 da Constituição é de inclusão – diferentemente das normas de exclusão das Constituições pré-88-, abrigando generosamente os arranjos familiares existentes na sociedade, ainda que diferentes do modelo matrimonial. A explicitação do casamento, da união estável e da família monoparental não exclui as demais que se constituem como comunhão de vida afetiva, com finalidade de família, de modo público e contínuo. Em momento algum a Constituição veda o relacionamento de pessoas do mesmo sexo. A jurisprudência brasileira tenta preencher o vazio normativo infraconstitucional, atribuindo efeitos pessoais e familiares às relações entre essas pessoas. Ignorar essa realidade é negar direitos às minorias, incompatível com o Estado Democrático. Tratar essas relações cuja natureza familiar salta aos olhos como meras sociedades de fato, como se as pessoas fossem sócios de uma sociedade sem fins lucrativos, é violência que se perpetra contra o princípio da dignidade das pessoas humanas, consagrado no art. 1º, III, da Constituição. Se esses cidadãos brasileiros trabalham, pagam impostos, contribuem para o progresso do país, é inconcebível interditar-lhes direitos assegurados a todos, em razão de suas orientações sexuais. (g.n)’”. (TJ-SP, Ap. cível n. 552.574-4/4-00, São Paulo, Oitava Câmara de Direito Privado, voto n. 15.894)
Diante todas essas considerações e, também, tendo em vista a vivência, por longo anos, com os dramas pessoais apresentados perante a Vara de Família, desta capital, onde fui titular e onde as pessoas buscavam o reconhecimento, pelo Estado, da própria dignidade, pelo meu voto, afasto a extinção como antes fixada e, por conseqüência, de se prosseguir com o feito em análise do mérito perante uma das Varas de Família – considerada anterior decisão em matéria assemelhada onde se instaurou disputa referente à competência - (TJ-SP, conflito de competência n. 170.046-00/6-00, Câmara Especial, relatora Desembargadora Maria Olívia Alves e que contou, também, com os Desembargadores Munhoz Soares (presidente sem voto), Martins Pinto e Luiz Tâmbara).



ÉLCIO TRUJILLO
Terceiro Juiz

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